terça-feira, 7 de janeiro de 2020

José de Anchieta e o Sínodo da Amazônia: Uma profecia que nos coloca na defesa da terra e dos povos originários da floresta


Felipe de Assunção Soriano, SJ
Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP
felipeassj@yahoo.com.br


Com o advento da estrema direita no Brasil, setores minoritários se tornaram alvos ainda mais explícitos de intolerância, do obscurantismo e da ganância de setores econômicos no país. Tal clima, agravado por pronunciamentos da presidência da república ganham efeito explosivo na mídia, nas relações internacionais e na sociedade em geral. O desmonte de garantias fundamentais, a crescente apologia à violência, a desidratação de serviço de controle ambiental e assistencial e o aparelhamento do Estado por milícias é o mote que rege o novo momento político nacional.
Todavia, de forma ainda mais dramática, o planeta se coloca perplexo diante do tema da Amazônia e da situação dos povos indígenas. Não é estranho pensar que o tema do índio continue sendo assunto não resolvido no Brasil. Nas cartas da Companhia de Jesus encontramos uma carta de José de Anchieta ao Geral Pe. Cláudio Acquaviva, escrita na Capitania do Espírito Santo, dia 7 de setembro de 1594.
Terminado o seu mandato como provincial e instalado na Missão de Rerigtibá, José de Anchieta foi enviado ao Rio de Janeiro e a São Vicente como visitador para as casas do sul por não ser possível ao provincial, Pe. Marçal Beliarte, vir ele mesmo fazer essas visitas por causa dos franceses na costa do Brasil. O mesmo Pe. Beliarte escapou de ser capturado por Thomas Cavendish, em 1592. Não sendo menores os perigos para José de Anchieta, de canoa, sai de Santos ao Rio de Janeiro escapando de cair prisioneiro nas mãos dos piratas ingleses, refugiando-se na Ilha de São Sebastião.
A Capitania do Espírito Santo sempre chamou atenção da Companhia de Jesus, primeiro, pela bondade da terra e, segundo, pela grande quantidade de índios que se encontravam escravos nas mãos de portugueses. Não eram pequenas as artimanhas que se usavam para cativar e prendê-los, mas, também nesta capitania, tocou o Pe. Leonardo Nunes compreender que a sorte dos índios dependia diretamente da conversão dos portugueses. Os esforços da Companhia de Jesus em educar índios escravos, livres e criar aldeias visava evitar que os pais vendessem seus filhos índios como escravos.
O interesse pela mão de obra indígena, a grilagem de suas terras, o fomento de conflitos entre as nações e a negação de sua cultura foram as formas usadas para escravizá-los. Em situação dramática e com muita lucidez, escreve José de Anchieta ao Padre Geral da Companhia sobre a situação do índio nesta Capitania.
"Nesta Capitania do Espírito Santo acho agora muita perturbação, entre os portugueses uns com outros sobre pretensões de ofícios e honras, e com os Nossos, porque não lhes concedemos que façam dos índios cristãos à sua vontade, querendo servir-se deles a torta e a direita. Mas como esta é guerra antiga, que no Brasil não se acabará, senão com os mesmos índios, trabalhamos o possível por sua defensão, para que com isso se salvem os predestinados, que se não se tivesse respeito a isso, era quase insofrível a vida dos padres nas aldeias, sed omnia sustinemus propter electos" (2 Tm 2, 10)*.
Nesta carta, José de Anchieta constata que o Estado, no fundo, não sabe o que fazer com o gentio. Esta nota ressoa aos nossos ouvidos como alerta ou profecia, pois, apesar dos esforços das organizações nacionais e internacionais, o tema do índio segue inspirando cuidado. Primeiro, porque há uma questão de ofício, pois o Estado decidiu sozinho dar uma resposta à questão indígena desprezando qualquer competência e tendo-as como ameaça neste tema.
E, em segundo lugar, o desaparelhamento das instituições e organismos que trabalham com a questão indígena é sinal concreto do pouco respeito que se tem a esses povos. De fato, como alerta José de Anchieta, o Estado quer dispor das terras indígenas à sua vontade, querendo servir-se delas a torto a direito.
José de Anchieta reconhece que esta guerra antiga não se acabará no Brasil sem antes acabar com os mesmos índios. Para que isso não aconteça é necessário continuar promovendo a sua defesa, pois diante de uma sociedade agressiva e intolerante, os pobres e aqueles que possuem uma cultura diferenciada estão sempre mais vulneráveis e indefesos.
Tal chamada profética põe luz à missão da Igreja no Brasil às portas do Sínodo da Amazônia, que se dedicará a refletir sobre os reais desafios para evangelização nesta região. Novamente, estamos diante de dois projetos que visam levar desenvolvimento para a região: um que parte do respeito à natureza e sua diversidade e outro que pensa em explorar infinitamente seus recursos em detrimento dos povos originários.
A Amazônia, como bioma vivo e em conexão com o planeta, que se distribui entre nove países da região pan-amazônica, se presta ao mundo da mesma forma que se presta ao Sínodo, i. é, como metáfora do cuidado da Casa Comum. Como evento eclesial, por causa do seu caráter profético, reconhecemos o desamparo que os povos indígenas estão sujeitos sendo alvos de preconceito, discriminação de todo tipo, mas, como afirma José de Anchieta, estes pobres também são predestinados às riquezas do Evangelho.
Assim conclui o Apóstolo do Brasil em sua profecia, pois somos chamados a “suportar, porém, tudo isso, por amor dos eleitos” (2 Tm 2,10). É assim que vemos o Papa Francisco quando nos apresenta uma ecologia integral como resposta aos graves problemas socioambientais do nosso tempo. O problema do índio no Brasil, posto agora em novos termos, seja perante o Estado, seja perante a Igreja, só desaparecerá quando matarmos em nós o medo que temos do diferente e não, como pensam alguns, quando se der a plena incorporação do índio à sociedade cristã e dita civilizada.
* ANCHIETA, Joseph de. Cartas, correspondência ativa e passiva. In.: Carta do P. José de Anchieta ao Geral P. Cláudio Acquaviva, Espírito Santo, 7 de setembro de 1594. São Paulo: Loyola, 1984, p. 415-420.

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