terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O poema "Jandé jára ariré" (Dança para os Reis Magos): Crítica de José de Anchieta contra a maldade dos portugueses que escravizam os indígenas na Capitania do Espírito Santo.




Felipe de Assunção Soriano, SJ
Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP
felipeassj@yahoo.com.br

A Festa de Reis Magos é uma das festas do Senhor que recebeu atenção especial de José de Anchieta, isto é, uma peça poética feita, provavelmente, para o final do seu Auto de Natal a “Pregação Universal” (1575) ou para a Festa de Reis na Igreja de Reis Magos, Nova Almeida-ES. A devoção aos Santos Reis remonta à tradição da Casa de Aragão (Espanha), que tem por patrono os Santos Reis do Oriente. Tal devoção foi incorporada a catequese anchietana na meditação da quarta contemplação dos Mistérios Gozosos escritos em tupi. José de Anchieta substitui o mistério da Apresentação de Jesus no Templo pela Adoração dos Magos ao Menino. Para José de Anchieta é mais importante para o índio ver que “as nações de toda a terra vão adorar o Senhor” (Mt 2,1-12).
A cantiga é composta por quatro quintilhas e seis quadrinhas em redondilha maior, esquema métrico preferido para as peças cantadas em tupi. O poema em questão foi escrito para uma confraria de escravos, que era o caso de alguns lugares como São Vicente, Rio de Janeiro e a Aldeia dos Reis Magos no Espírito Santo. Um poema escrito em tupi e português por causa do seu público, isto é, dando voz aos índios e chamando a atenção dos portugueses. A peça foi feita para ser dançada e acompanhada por meninos tocando gaitas. A cada dançarino, competia cantar uma das estrofes. Das dez, só uma foi escrita em português, a 7ª, fazendo sua crítica aos portugueses e valorizando ainda mais os versos precedentes em tupi. O público alvo desta catequese são os índios, mas, conforme o estilo da missão, construída em quadra, também há portugueses residentes ou convidados ao festim.
Armando Cardoso (1984), chama a atenção ao tom usado na canção, por causa do muito afeto e graciosidade colocadas nos versos em favor dos curumins. Os indiozinhos cantores, dançarinos e gaiteiros são quem sustentam a louvação ao Menino Deus. Conforme o estilo devocional, dança-se dentro da Igreja, isto é, diante da pintura em tinta óleo feita pelo jesuíta Pe. Belchior Paulo que traz em primeiro plano a Virgem Maria e o Menino e, no segundo plano, os Magos em adoração e José (1598). A obra é uma crítica forte contra os portugueses que perseguiam, maltratavam e só desejavam os índios como escravos. Embora ingênua nas ideias, a linguagem é elegante e sentimental, pois a peça foi feita para ser cantada por dez meninos que aprendem português e ensinam aos seus pais.
Na primeira estrofe, à procura de Nosso Senhor, veem de longe os Reis, seus fiéis, trazendo presentes. No segundo estrofe, apelando ao apego que os índios têm aos seus filhos pequenos, José de Anchieta chama o Senhor de meninozinho, pois todos amam muito o seu Criador de coração. Na terceira estrofe, coloca-se em revelo o fato dos escravos dançarem neste dia, deixando os maus hábitos e acreditando em Deus. Na quarta estrofe, canta-se em primeira pessoa dizendo que os escravos índios deixam os velhos costumes e creem em Tupã. É o seu autor quem reage neste verso dizendo: “abalei-me do meu repouso alegrando-me, com razão, por amor destes escravos.”
Na quinta estrofe, ele nos dá o motivo da vinda, pois não viria jamais à Missão por causa dos homens brancos que, como sempre são perversos e malditos, pois, mesmo sem guerra contra os índios, são traiçoeiros. José de Anchieta não esconde a malícia dos portugueses que assediam os índios tentando escravizá-los, mas, no singular, dá-nos a pensar que o Deus Menino seja índio ao chamá-lo de escravozinho. Na sétima estrofe, o único em português, fala diretamente aos destinatários desta catequese, isto é, os que precisam de correção, os portugueses, pois ao verem meninos índios dançando e tocando, logo dizem os malditos portugueses: “Oh, que bonitos meninos para serem nossos boieiros!”
Na oitava estrofe é dirigida ao menino recém nascido: “Cuidado, cuidado, menino,/ para que os brancos não te batam!/ Eles tudo se irritam, pois são maus. / Não vão te esbofetear hoje,/ conforme é seu mau costume”. Na nona estrofe encontramos um consolo aos indiozinhos que adoram o Menino Deus, pois “diante de palavras ameaçadoras que ouviram /esperam que depressa se desfaça tal armadilha, / pois eles hoje serão bondosos / e nos darão também presentes (Anzóis).” Os índios adoravam pescar com anzóis e buscavam os portugueses para que lhes dessem alguns, pois tal manejo técnico facilitava sua pescaria. Por fim, na última estrofe, termina-se o canto saudando ao Menino e a sua mãe a Tupansý: “a Jesus virtuoso, / a Maria, sua mãe, /que são o objeto deste canto, / pedindo que nos deem a vida eterna / a minh’alma dos índios seus”.
O poema "Jandé jára ariré" (Dança para os Reis Magos) é uma pérola da catequese anchietana, pois traz a público as tensões internas do trabalho com o gentio, a relação com os colonos portugueses e as pressões externas ao trabalho missionário. A crítica feita aos portugueses é a mais dura já dirigida por José de Anchieta, pois recorre à figura de Jesus Menino em paralelo aos pequeninos índios explorados. Quase sempre, conforme as orientações para as correspondências da Companhia de Jesus, evitava-se tecer críticas tão fortes contra os portugueses. Certamente, em contexto bíblico, José de Anchieta fundamenta tal crítica no relato do massacre das crianças inocentes de Jerusalém que foram mortas pela crueldade de Herodes (Mt 2, 16-18). O que o canto nos revela é a situação limite que se impõe às Missões e a necessidade delas como lugar onde ainda era possível defender os índios.
Segue a tradução de Eduardo de Almeida Navarro, publicado na obra Poemas lírica portuguesa e tupi de José de Anchieta, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 192.
Após o nascimento de Nosso Senhor,
De longe vieram uns reis,
Crendo muito nele, com efeito.
Para fazer oferendas a ele,
Trouxeram-lhe cosias.
Os reis apressados, neste dia, junto a seu Senhor
Nenezinho vieram.
Amam muitíssimo
Em seu coração a seu criador.
Por isso mesmo os escravos
Festejam este dia.
Imitando o antigo procedimento dos Reis,
Em Deus confiam.
Eu, a respeito dele perguntando,
Vim da minha casa.
Alegro-me muito,
Amando os escravos.
Eu não queria vir (mas vim)
Irado os homens brancos.
Sempre os malditos para nós
Dizem maldades, mui perversamente.
Assim dizem sempre vendo-nos:
- Ah, é muito bonito o menino
Que poderia ser escravozinho!
(Trecho em português)
Como nos veem pequeninos,
Dançadores e gaiteiros,
Logo dizem os malinos:
“Ó! Que bonitos meninos
Para ser nossos boiadeiros”.
Bobagem, bobagem, menino,
Não te castiga o homem branco.
O que se irrita, desgraçado,
Não esbofeteia teus têmporas
Por o tratares mal.
É difícil essa língua.
Bem longe nos livremos.
Que eles perdoem hoje
A nós, dando anzóis.
Por meu Jesus bondoso
E sua Mãe Maria também,
Quero dançar, dizendo
- “que dêem eles
a vida futura de minha’alma”.

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